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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

cacto em flor

Dia seguinte ela estava lá. Chapéu na cabeça, lenço na mão. Vestia o vestido mais bonito. Mais bonito que o do dia anterior. O dia anterior também estivera lá. Chapéu na cabeça e lenço na mão. E assim, dia após dia. Não mudava o chapéu, não trocava o lenço. Não mudavam os acenos. Se bem que, com o tempo e a experiência, a encenação foi ganhando tons mais maduros e bem articulados.

Porém mudava o vestido. As estampas que ela levava para passear mudavam significativamente a paisagem da estação. Não fora isso, não fora suas flores e formas geométricas, seria sempre os trilhos gastos, os pilares de madeira carcomidos, o chão empoeirado, maletas e senhores de marrom, damas de bordô, uniformizados em azul-marinho, ela encenando seu aceno e o trem velho chegando e partindo.

Nada mudava. Os azul-marinho se perguntavam todos os dias o que a senhora das estampas fazia ali todos os dias. Nunca a viram chegar com ninguém. Nunca a viram chegar de fato. Parecia que estava sempre ali plantada e seu vestido mudava de estampa sozinho. Inventavam histórias para a figura misteriosa, como a da mulher-camaleoa.


A mulher-camaleoa


Reza a lenda inventada pelos azul-marinho que a mulher-camaleoa habitava a estação de trem até mesmo antes de que ali houvesse estação ou trem. Que ali, quando só deserto havia, a mulher-camaleoa era só camaleoa.

Queria ser mais que só cor de terra, queria virar planta, bicho, gente. E ela, querendo ser gente e não podendo, apoderou-se do sentimento que tanto ouvia dizer por aí que brotava no coração dos homens.

Sem saber o que era coração e o que era sentimento, inventou um que imaginava ser um. Se apaixonou por um cavaleiro que por ali sempre passava. E foi assim, inventando ser gente, que gente se tornou. E agora mudava de cores pra chamar a atenção do cavaleiro. Queria ser flores no deserto. Queria ser formas e cores várias. Ser gente não bastava. E a cada dia tentava um vestido mais bonito. Mas o cavaleiro passava sempre às pressas e tudo o que ela podia fazer era acenar para ele, num eterno boas vindas, num eterno adeus.

Hoje diz-se que o cavaleiro aposentou seu cavalo. Chega e parte com o trem. E a mulher-camaleoa está sempre ali para recebe-lo e despedir-se dele. Quando o trem parte, ela volta a ser da cor da estação.


E eram todos os dias, pontualmente as 7. Quando não se percebia, sempre quando estavam todos por algum motivo muito distraídos ou muito atarefados para se darem conta, era que ela surgia, parada no 14º pilar, contando a partir da direção de onde vem o trem, acenando para ele quando chega. Logo dava a meia volta. E novamente acenava para a sua partida. Entusiasmada, apaixonada, melancólica, deprimida.

A meia volta era coreografada, em torno de seu eixo, para o lado esquerdo, voltando-se para dentro da estação; os passos contados de modo a fazer a saia do vestido balançar acompanhando o movimento delicado e natural do braço. Mas nada tão natural. Era coreografado. De modo que só mulher gente poderia; a dança que só mulher é capaz de conceber.

Percebia-se na sua melancolia e solidão algo de levemente alegre, era feliz de ser mulher, de poder pensar cada passo e gostava daquela condição de estar ali todos os dias. Gostava de ser diferente nos vestidos e sentir-se flor naquele deserto. Mas faltava seu sonho de homem, que ficou perdido em algum portal do passado e que, de alguma forma, o contato mais próximo dele era pelo trem das 7.


Vagões descarrilhados


Eles se encontravam todo dia pontualmente as 7. No meio do deserto. Ela cada dia com um vestido novo. Ele com ares de proibições. Ela com ares de apaixonada. Às vezes o contrário. Geralmente era ela quem esperava, paciente. Via-se de longe suas cores. Um cacto em flor, no meio do nada. Era assim que ele a chamava. E, quando não derretia pelo calor da espera, derretia por seus elogios tão esperados.

Diz-se que um dia ele não veio. E nem no outro. E nem nos seguintes. Então ela passou a vagar a sua procura, os vestidos mudavam com as auroras. Os raios de distintos sóis iluminavam seu corpo de forma diferente a cada dia, assim as cores e flores mudavam também.

Ela o decobriu preso em uma faixa de deserto, cavalgando cego de um lado para o outro. Não conseguia ir para os lados. Ele nem mais imaginava que existiam os lados. Era como se uma força qualquer o impedisse de descarrilhar. Ele andaria para sempre nos trilhos. Então ela decidiu parar ali. Acenando quando ele vinha e quando voltava, na esperança de que um dia ele viesse a enxergar novamente. Ao menos enxergar.

Esta faixa era exatamente do tamanho dos trilhos do trem. E é onde hoje passa o trem.


E ela partia. Mas também não a viam partir. Era sempre muito discreta. Parecia que ia-se junto com a fumaça do trem. Dizia-se que que se fragmentava e se tornava fumaça também. As flores se despetalavam e voavam com o vento. Ficava só seu perfume, que a cada dia era diferente (pois eram diferentes as flores). Mas logo o perfume também se dissipava.

E ficava a esperança do dia seguinte. A esperança de que viria dar cor ao dia dos azul-marinho; de que seu novo perfume seria ainda mais agradável que o do dia anterior. Deixava esperança nos corações, olhos e pulmões. Trazia consigo a esperança de que alguém ali dentro podia vê-la e que seus acenos o comoviam de alguma forma.


A mulher que se esqueceu de respirar


Já esteve lúcida, quando não lhe falhava a memória ainda, quando ainda seus olhos estavam do lado certo da cabeça. Aquela época era quando todos os dias se arrumava, se perfumava, escolhia seu vestido mais bonito e ia encontrar-se com o azul-marinho da bilheteria. Cheia de sentimento apaixonado no peito. Cheia, tão cheia que o ar de dentro de si saia pelos poros e adicionava às suas particulas notas daquele perfume floral e as levava embora com os outros ares que passavam. As flores se espalhavam pela estação.

Um dia, quando caminhava em direção ao encontro do seu, carregando consigo todo o ar e todo o sentimento apaixonado, esqueceu-se de afrouxá-los um pouquinho de dentro do peito, como normalmente se faz. Foi quando os poros sozinhos não mais deram conta de expulsar as partículas; elas fizeram-se muitas e acabaram por implodir. Tal foi a força da implosão que ar e sentimento foram parar na cabeça, fazendo com que olhos se voltassem para o outro lado e com que os pensamentos se confundissem todos.

Esqueceu-se do azul-marinho. O coração vazio de sentimento não reconhecia o lado certo, mas alguma pontada no peito de partículas amorosas que ainda ali sobravam lhe dizia que o seu alguém estava em algum lugar na estação.

Com olhos agora voltados para o outro lado, a bilheteria não mais lhe chegava à vista. O outro lado era o do trem.

Ele tentou avisá-la, mas a implosão parecia também ter atingido os ouvidos.


O azul-marinho então resolveu enfiar-se num vagão. Partiu da estação anterior, chegou no trem das 7 que chega e parte. Partiu denovo. Ele voltara a enxergar. Continuava nos trilhos, mas ao menos enxergava. Acenou-lhe euforicamente. O coração dela explodia um pouco a cada palpitação. Deu meia volta, acenou de novo e ele continuava acenando da janela. Agora era correspondida. Então já podia abandonar coreografia, perfume, flores. As pequenas explosões reverberaram por todo o corpo e fizeram olhos e pensamentos voltarem ao lugar. Voltou a ser camaleoa e nunca mais apareceu na estação.